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Amici, hoje é dia de San Gennaro, o mais Palestrino de todos os santos! Não poderia deixar passar essa data sem fazer as honras a esse ícone tão representativo da nossa cultura, mas já gastei o verbo por esses dias – e quero presentear-lhes com um texto para lá de consistente que nem todos leram, do meu irmão André, pois que foi postado em espaço restrito para assinantes.
Não conseguiria eu escrever nada que fosse tão pertinente a essa data, muito embora a crônica que deixo abaixo seja de 27/08, um dia após a fundação do nostro Palestra. Um presente para os leitores e amigos desse blog.
NÓS, O PALMEIRAS
Os senhores vão me dar licença, mas jamais crônicas minhas haviam sido publicadas, neste Literário, numa data tão próxima ao dia em que a Sociedade Esportiva Palmeiras comemora seu aniversário. Portanto, desta feita, não vou encontrar meios de escapar de certas obrigações. Explico-me. Corre agora meu terceiro agosto ocupando este espaço. Nas ocasiões anteriores, foi diferente. Tive tempo suficiente, entre a tarefa de escrever e a referida data, para contornar qualquer sentimento – seja de obrigação da minha parte, seja de expectativa dos outros, os que me lêem – que me impusesse a missão de tocar em assunto tão perigoso. Entretanto, como preparo com um dia de antecedência (ou ao menos deveria fazê-lo, afinal) essas crônicas com as quais lhes amolo, o ano da graça de 2008 reservou-me a tarefa de elaborar esta justamente em 26 de agosto – dia em que o Palmeiras completa 94 anos, donde não estou conseguindo pensar em mais nada a não ser em tambores rufando, sinos repicando, incenso, Honra e Glória. Não sei se foi sorte, não sei se foi azar. Talvez tenha sido sorte, porque dentre os maiores deleites que há nesta vida está o de discorrer sobre o objeto do nosso amor. Mas receio que talvez tenha sido azar, porque não costumo sair-me bem nesse tipo de aventura – como direi? – menos debochada. Vejamos.
Sei que já disse, antes, muito do que penso sobre o futebol, sobre seus principais clubes, sobre as torcidas dessas agremiações. Portanto, não vou maçar ninguém com assuntos ou piadas velhas, por melhores que sejam. Apenas, parece-me que é o caso de lembrar-lhes daquela minha opinião segundo a qual nossos times de coração não são outra coisa que não nossas pequenas pátrias. Porque, de muitas maneiras e sob diversos ângulos, o Palmeiras, para mim, é um lar, e a cada vez que vejo aqueles homens – quaisquer que sejam, onde quer que seja – entrando em campo enfiados no fardamento esmeralda, então é como se eu voltasse para casa. Para a minha casa. Para a casa do meu pai, para ficar ao lado dos meus irmãos.
Conheci muitos sujeitos, muito sensatos e os quais respeito muitíssimo, incapazes de compreender por que times de futebol são tantas vezes tratados como se fossem algo além do que são – times de futebol, nada mais do que times de futebol. Gostaria de enriquecer-lhes o espírito esclarecendo dois ou três pontos de fundamental importância. Compreendo que o Palmeiras não é, literalmente ao menos, minha família, e que aqueles que são literalmente minha família me são mais valiosos do que o Palmeiras; mas não posso deixar de acrescentar, complementarmente, que, por outro lado, uma família minha sem o Palmeiras poderia ser algo muito digno de devoção, mas ainda assim seria outra coisa totalmente diferente desta família na qual cresci e que farei crescer; e que, portanto, o que os senhores pedem quando me pedem menos arrebatamento ou grandiloqüência ao referir-me ao Palmeiras parece-me antes sugestão para que eu invente, do nada, uma família desconhecida e obviamente inexistente, para somente depois, tarde demais até, soar como algo vagamente assemelhado a um chamamento à sensatez e à racionalidade.
Não há um único dia em minha vida em que eu não me lembre do Palmeiras. Quando acordo, a primeira coisa que me ocorre é que Deus é bom e perfeito e me permitiu acordar de novo, e de novo, e outra vez – o que, diante de minha dieta, acresce de ares milagrosos a já fantástica rotina do Universo. A segunda é que Deus é bom e que me permite, de maneira não menos milagrosa, acordar ao lado de uma mulher talhada para o meu talhe e, de quebra, estupendamente cheirosa – e isso todos os dias, abençoados. A terceira, consecutiva e célere, desde que me conheço por gente é:
– O Palmeiras joga hoje?
E só depois me lembro de que o mundo tem manteiga, frutas, ovos, leite e pão, que a água encanada e a eletricidade já chegaram ao Cambuci Profundo, especialmente para esquentar meu banho, e que quase nada conhecido valeria o prazer de mijar grosso e barulhento na manhã do dia novo.
Há fatores curiosos nessa relação. Quanto pior for a situação do time, menos chances há de minha atenção desviar-se, dentre outras coisas porque se há algo que caracteriza essa afeição é que não há a menor necessidade de explicá-la por inteiro – daquele modo como se explicam tão bem tanto as vacinas como os genocídios. Assim, munido de motivos muito racionais, mas nem por isso articuláveis em sua plenitude, posso amar o Palmeiras não porque ele é campeão, rico, belo ou grande, mas sim fazê-lo grande, belo, rico e campeão porque o amo – o que é muito mais bonito de se fazer, além de um jeito muito melhor de se tocar a vida.
A memória de que sou palmeirense caminha ao meu lado o tempo inteiro; não ativa, histérica e patológica, mas como a certeza silenciosa e tranqüila de que amo viver, de que sou casado, de que não devo roubar, mentir ou desejar o mal. A memória de que sou palmeirense permeia algumas de minhas melhores memórias; o sol esplendoroso do Palestra lotado ou o pomar dum sítio que não vou ver mais, a pizza na Turiassú ou a chuva nas minhas costas durante a peleja perdida no verão remoto, os grandes natais que ainda promoverei, o filho que ainda vou ter, meus mortos que ainda vou enterrar – todos tão meus como o Palmeiras.
Em breve – coisa de dias – o Palmeiras jogará de novo. Horas antes, exatamente como muitos e muitos muito antes de mim, vou fazer soar o som atômico no meu rádio. Cada minuto dessa nova transmissão será mais um passo do ritual ancestral e sagrado que me lembra de quem eu sou, de onde eu vim, de onde vieram os meus. Assombroso, o aviso de sempre soará mais outra vez, grave e poderoso como as terríveis profecias do deserto: aqui somos nós, os moços e velhos que, fugindo da fome, da guerra e da morte, viemos a esta terra estranha, agora tua também, juntar nossos braços às forças que ergueram o colosso onde tu moras e de onde tiras o sustento de tua família. Aqui somos nós, aqueles que partilham contigo o gosto pelo barulho, pela música e pela dança estridente, pelo drama e pelo exagero, pelo abismo e pela ressurreição. Nós, que amamos a vitória e que não nos envergonhamos dela, e que por amor a ela e às festas, ao brilho e à música criamos essa força, esse símbolo no qual tu deves te apoiar para não te esqueceres de quem és – nem do que em ti é mau, nem do que em ti é bom. Nós somos o passado e somos tu, somos teu pai e seremos teu filho.
Aqui somos nós, ainda de novo.
Nós, o Palmeiras.
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